TERRAS
Agora é esperar para ter lucro

Regularização da invasão da Estrutural e dos condomínios provoca aumento do preço dos lotes e alimenta indústria da especulação imobiliária, que expulsa população mais pobre para a periferia. Valorização é bem recebida pelos moradores

Tarciano Ricarto e Rovênia Amorim
Da equipe do Correio

São cinco mil barracos, de madeirite e tijolo à mostra, amontoados em ruas esburacadas. A água para cozinhar e tomar banho é suja. Vem de caminhões-pipa que abastecem os tambores enferrujados. A única melhoria urbana é a luz que o governo do Distrito Federal mandou colocar há dois anos.
  Mas o cenário de pobreza da invasão da Estrutural está perto do fim. Com a regularização aprovada pela Câmara Legislativa na última quarta-feira, o futuro previsível da favela é entrar no jogo da especulação imobiliária. Outras ocupações de baixa renda, como Riacho Fundo e Candangolândia, viraram bairros de classe média depois que a infra-estrutura chegou.
  O destino provável da Estrutural é se tornar mais um capítulo na história da especulação das terras no DF. A expectativa da regularização provoca a valorização. ‘‘A terra fica cara em qualquer favela regularizada. Isso porque as famílias de baixa renda precisam de dinheiro e entram também no esquema da troca’’, afirma o geógrafo Aldo Paviani, pesquisador da Universidade de Brasília (UnB) e especialista na ocupação urbana no DF.
  Os moradores da invasão, empolgados com a regularização, ainda não se deram conta de quanto a área será valorizada futuramente. Há uma ano, a família do vaqueiro José Miranda pagou R$ 300 por um lote de seis metros de frente. ‘‘O preço também incluiu a madeirite do barraco’’, conta. A mulher dele, a costureira Maria Amélia Nascimento, comemora a regularização e garante que não deixa o local. Ao menos, agora. ‘‘Tem que ser muito dinheiro para tirar a gente daqui’’, afirma.
  A especulação já nasceu com Brasília. O primeiro erro, segundo o pioneiro Ernesto Silva, foi não desapropriar todas as terras do Distrito Federal. Na época das desapropriações, ele era secretário da Comissão de Localização da Nova Capital. Estudo da Secretaria de Assuntos Fundiários aponta que apenas 65% das antigas fazendas foram compradas. ‘‘O que ficou nas mãos dos antigos donos virou terreno fértil para a especulação e o Governo do Distrito Federal não pôde mais fazer um plano de utilização da terra’’, explica.
  As conseqüências foram desastrosas. A terra foi retalhada de forma clandestina. Os lotes irregulares, vendidos a preços baixos, eram um negócio de risco para quem comprava, mas lucrativo para quem vendia. A ocupação descontrolada provocou um caos urbano. Áreas que não poderiam ser adensadas viraram setores habitacionais. E a criação de assentamentos para remover favelas no Plano Piloto e nos seus arredores extinguiu rapidamente locais de futura expansão urbana.
  A política habitacional do governo é clara quanto a isso. Simplesmente não há lugar para novas cidades no DF. O pouco espaço que ainda poderia ser ocupado terá de ficar desabitado para não desequilibrar ainda mais o meio ambiente. Além do mais, os terrenos em áreas urbanas (dentro das próprias cidades) estão perto do fim. Depois de quatro décadas de usos e abusos, a Companhia Imobiliária do DF (Terracap) administra o final do estoque de terrenos.
  Não há quase mais nada para se vender nas áreas nobres, como Plano Piloto, Lago Sul e Norte — primeiros alvos da especulação imobiliária. Os terrenos livres para adensamento nas cidades mais carentes, como Recanto das Emas e Samambaia, são utilizados para atender a população inscrita nos programas habitacionais de baixa renda.


Colaborou Samanta Sallum

Desapropriações superfaturadas

Existe outro tipo de especulação, também danosa ao patrimônio público, que não passa pela regularização de assentamentos e condomínios: as desapropriações superfaturadas. A Corregedoria-Geral da União, numa investigação preliminar, encontrou indícios dessa prática na Terracap e pediu que fossem revistos todos os contratos de desapropriação assinados pela empresa desde 1991. Em 1994, por exemplo, a Terracap pagou para a empresa Vale do Simental R$ 19 mil por hectare de terra em um lugar onde o preço não passava de R$ 3 mil.

Lei da oferta e da procura

Regularização da Colônia Agrícola Vicente Pires, em Taguatinga, pode duplicar preço dos lotes parcelados irregularmente em 283 chácaras. Expectativa de criação do Setor Noroeste, por outro lado, afugentou construtoras de Águas Claras

A especulação não é culpa só do empresário do setor imobiliário. O morador também especula quando investe o dinheiro num terreno irregular. Além da favela da Estrutural, o parcelamento das chácaras da Colônia Agrícola Vicente Pires, em Taguatinga, também deve sair da clandestinidade. Os deputados distritais, por unanimidade, foram favoráveis à regularização do bairro, em votação na terça-feira passada.
  Ganham com isso os moradores e os corretores de imóveis do local. O pedaço de chão, que hoje é vendido por até R$ 40 mil, pode dobrar de preço.
  A notícia da regularização fez Waldeci Rodrigues desistir de vender a casa. Há quase três anos ele mora num lote na Vicente Pires. Primeiro morador a chegar numa da 283 chácaras, transformadas em condomínios de até 36 lotes cada uma, ele estava decidido a mudar para um local mais urbanizado. Já havia até afixado anúncio na entrada do condomínio. Ao saber da regularização, arrancou o aviso. ‘‘Não vou mais vender. Mas, depois que a regularização sair, pode ser’’, diz Waldeci.
  O livro História da Terra e do Homem no Planalto Central, do historiador Paulo Bertran, menciona relatos de que o português Urbano do Couto, um dos primeiros bandeirantes a chegar ao Planalto Central, descobriu em 1750 uma fabulosa mina de ouro nos arredores de onde hoje fica Planaltina de Goiás, a 30 km de Brasília. As terras do Distrito Federal, 250 anos depois, se transformaram no verdadeiro ouro. A especulação começou em 1955, com a desapropriação das antigas fazendas, e atravessou o tempo.
  Desde o começo, a compra das fazendas não foi tarefa fácil. Em 1958, Altamiro de Moura Pacheco, presidente da Comissão de Cooperação para a Mudança da Capital Federal, já antevia o desastre urbano derivado da especulação, caso a desapropriação das fazendas não fosse cumprida totalmente.
  ‘‘Com o rapidíssimo prosseguimento das obras de Brasília surgiria uma progressiva e mesmo imprescindível valorização dos imóveis de todos os municípios circunvizinhos (...) e construiria um campo indiscutivelmente propício à ação dos especuladores’’, escreveu Altamiro ao então governador de Goiás, José Ludovico de Almeida.
  Com a construção de Brasília, as terras rurais até então ignoradas voltaram a ter valor. ‘‘As melhorias urbanas transformam terrenos baratos num bom negócio. As pessoas compravam e esperavam a valorização’’, explica o arquiteto Paulo Castilho Lima, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UnB.
  
Grilagem
Mas a especulação também se deu em terras ilegais. As propriedades não desapropriadas no final da década de 50 viraram uma mina preciosa. Os impostores e grileiros aproveitaram a falta de registro nos cartórios para fabricar documentos. A terra foi invadida e retalhada em lotes vendidos a preços em conta. Nasceu a máfia da grilagem e a indústria das invasões.
  Castigada pela pouca oferta de imóveis, a classe média colaborou para a explosão dos condomínios. Ao mesmo tempo, famílias pobres, atraídas de outras regiões, continuaram a encher Brasília e os seus arredores de barracos.
  A remoção das favelas fez surgir os assentamentos. A terra pública, tão valiosa, foi doada. Surgiram novas cidades — Ceilândia, Samambaia, Recanto das Emas. Mas nada freia a especulação imobiliária. Pelo menos 40% dos lotes doados pelo governo Joaquim Roriz no programa de remoção de favelas já foram revendidos.
  Com a autonomia política do Distrito Federal, a partir de 1990, o inferno urbano ganhou mais fôlego com a exploração política da terra. A terra virou moeda eleitoral e o governo — com ajuda dos deputados distritais — fabricou leis para regularizar as ocupações, primeiro passo para um futuro imprevisível. (TR e RA)

Interesses do mercado

‘‘Vamos provar que é viável e um bom negócio construir em Águas Claras’’
Eri Varela, presidente da Terracap

A pressão imobiliária não deixa de fora nem a Terracap. A empresa investiu pesado, fez campanha publicitária, mas não conseguiu vender 150 terrenos residenciais e comerciais em Águas Claras, bairro criado na década de 90 para atender famílias com renda mensal entre R$ 3 mil e R$ 8 mil. A venda dos terrenos poderia render R$ 166 milhões.
  Apesar de estudos da empresa apontarem que há demanda reprimida de 20 mil moradias nesse segmento, os lotes ficam encalhados nas licitações públicas. As construtoras não compram.
  ‘‘Não é birra nossa, não. Simplesmente as condições do negócio não atendem às nossas necessidades’’, alega um empresário do setor, que reclama da concorrência das cooperativas. Segundo ele, as cooperativas adquirem terrenos a preço mais baixo e têm descontos na hora de pagar impostos, o que permite que comercializem apartamentos a preços mais baixos em Águas Claras.
  Sem conseguir atrair as construtoras para Águas Claras, a Terracap decidiu entrar no jogo. A empresa quer desempenhar também o papel de incorporadora. Ou seja, em vez de simplesmente vender os terrenos, ela pretende construir os prédios e vender os apartamentos. A Terracap vai começar a fazer isso construindo dois prédios, de 20 andares cada um — quatro apartamentos por andar —, a 200 metros da estação do metrô de Águas Claras.
  Cada apartamento seria licitado por um preço que vai de R$ 150 mil a R$ 200 mil. ‘‘Vamos provar que é viável e um bom negócio construir em Águas Claras’’, afirma Eri Varela, presidente da Terracap.
  A empresa acredita que os terrenos de Águas Claras não são vendidos porque as construtoras estão mais interessadas em investir no futuro Setor Noroeste. O bairro está previsto para ser criado numa área nobre — entre as quadras 900 e a Água Mineral, no final da Asa Norte — e, por isso, é mais atrativo aos empresários da construção.
  O mercado, nesse caso, manda mais que as intenções da Terracap. As construtoras preferem aguardar a criação do Noroeste, onde os apartamentos serão vendidos a preço maior que seus similares em Águas Claras.
  Mas o Setor Noroeste não é a prioridade da Terracap. O governo quer concluir Águas Claras, que já tem infra-estrutura. O bairro conta hoje com 83 edifícios prontos e 100 em construção. Cerca de 15 mil pessoas já estão morando no local, que tem capacidade para 160 mil. ‘‘Essa resistência dos empresários em investir em Águas Claras vai acabar. Já foi assim com o Sudoeste, apelidado de Barroeste’’, afirma um dos diretores da Terracap.(TR e RA)

Causas do caos

Desapropriação
Decidida a transferência da capital para o interior do Brasil, começou o trabalho de indenizar os fazendeiros que tinham terra no futuro Distrito Federal. A estimativa é de que 60% das terras do quadrilátero do DF foram desapropriadas. O trabalho foi interrompido durante a construção de Brasília. Com a inauguração, as terras valorizaram e a indefinição fundiária estimulou a especulação e a ação de grileiros.

Mercadoria política
Com a autonomia política, em 1990, o DF ganhou o direito de eleger o governador e 24 deputados distritais. Começou o jogo de agradar a setores da sociedade para angariar votos e garantir a eleição. A terra pública é constantemente oferecida como moeda de troca. Na Câmara Legislativa, deputados distritais atendem interesses de empresários e alteram a destinação de lotes, que valorizam e passam a atender ao interesse dos especuladores. Área para hospital vira supermercado e, áreas verdes, postos de gasolina.

Invasões e condomínios
Omissão. Foi outra contribuição para a proliferação de invasões e condomínios de classe média que se consolidaram nos últimos 20 anos. São 386 condomínios e quase 300 mil pessoas morando em loteamentos irregulares e outras 80 mil em barracos. Toda essa ocupação desordenada em terras públicas e privadas (que poderiam ser desapropriadas e ter outra destinação) causou impacto ambiental e pôs fim a qualquer política de planejamento urbano.

Tombamento
A necessidade de fazer dinheiro extrapola cuidados com a preservação de Brasília, considerada Patrimônio Mundial pela Unesco. O governo anuncia projetos habitacionais criticados pela população e pelo Ministério Público. Um exemplo foi o anúncio da criação de um novo setor habitacional para a classe média — o Park Sul, uma área de 725 mil m² dentro do Parque do Guará. Especialistas posicionaram-se contra a construção de prédios de até 23 andares na área. A argumentação é de que o projeto fere o tombamento.