A arte da convivência nos elevadores

O livro sumiu da mão dela


Usuários do elevador em que ela trabalha destilaram seu ódio contra a amante dos livros

Vejo a ascensorista sem um livro nas mãos e pergunto o motivo.

- Reclamaram, ela responde, sem querer dar nomes aos bois.

Mas fica subentendido que usuários do elevador em que ela trabalha destilaram seu ódio contra a amante dos livros. Devem ter falado para o síndico, que então pediu a ela que parasse de ler durante o horário de trabalho.

Logo que comecei a frequentar o prédio para um tratamento odontológico, me chamou a atenção o interesse da ascensorista pela leitura, sejam livros, revistas, material didático ou jornais.

Tom Jobim disse que nada melhor para a saúde do que um bom romance. Esse galante conquistador se referia, é claro, à paixão amorosa. Mas eu poderia dizer também que nada melhor para a formação cultural do que um bom romance. Ou muitos romances, sucessivamente, sempre que se acabar a leitura de um.

Se foram frequentadores do prédio ou donos das salas que reclamaram da ascensorista, o resultado é o mesmo. Abortaram uma leitora ávida. Com a vontade que mostrava, ela deve ler em outros horários de seu dia, mas está perdendo horas e horas de leitura ao ser impedida de folhear as páginas enquanto fica sentada ali, onde por um bom tempo nem entra ninguém. E é obrigada a ficar olhando para aquele ambiente metálico insosso. Se fossem contabilizadas as horas perdidas de leitura, dava para formar uma biblioteca.

Que eu tenha visto, ela nunca deixou de tratar educadamente os usuários do elevador enquanto estivesse lendo ou demonstrou desconcentração para executar seu serviço, perguntando o destino do passageiro e acionando os botões corretamente.

Pode ser que vez ou outra ela tenha viajado em alguma história e se distraído. Porque há certas histórias que realmente são muito curiosas. Como aquela do cara que se apaixonava com tanta facilidade que começava relações sucessivas e, até sem terminar alguma, iniciava outras quando as meninas com que ele flertava davam corda. Por várias vezes, quando precisou registrar senhas para resolver sua vida burocrática, escolheu iniciais de nomes das mulheres com as quais estava apaixonado naquele momento. Achava que elas nunca sairiam de sua vida. Pouco depois tinha uma nova paixão e ao precisar da senha já havia esquecido com qual das suas paixões havia registrado os códigos. Uma insolúvel confusão amorosa que nenhuma senha poderia decifrar.

O ditado para esse cidadão poderia ser: "Um lunático?" Ou "O amor é cego?".

Você pode concordar com o síndico, dizer que trabalho é trabalho e a ascensorista não pode desviar sua atenção. Acho que isso está mais para um defeito de pessoas que querem ser o centro das atenções e não admitem que outra esteja lendo ao lado delas, visitando um outro mundo. No fundo, talvez a ascensorista demonstrasse tanto prazer diante daquelas páginas que causasse inveja. Tantas pessoas doentes indo aos consultórios naquele prédio e aquela ascensorista com brilhos nos olhos diante dos livros. Inadmissível!

Fico sempre do lado da leitura. 
São comuns as vezes em que, durante o trabalho, olhamos pra parede e dizemos pra nós mesmos como seria bom estar em outro lugar naquele momento. Imagina a ascensorista?! Na leitura ela pode ir aos mais infinitos lugares sem sair daquele banquinho apertado no canto do elevador.



Fonte: O Tempo