Cidades ocupam 132% a mais do território do DF do que há 22 anos

Numa folha amarelada de papel, Deusamar de Jesus, 46 anos, resume o sonho de uma vida e revela um problema social. O “documento” é o esboço de uma planta: WC, quarto 1, quarto 2, sala, cozinha, área de serviço. Os riscos no papel, desenhado à mão pela copeira, estão de pé. Viraram uma casa própria, erguida há dois anos bem no meio de uma das maiores invasões recentes do Distrito Federal, o Itapoã. “É o meu paraíso”, define. Só que o oásis de Deusa, como é conhecida na vizinhança, não tem esgoto nem asfalto. A construção irregular é um pontinho no universo das ocupações ilegais do DF. Em Itapoã, moram 105 mil pessoas, muitas delas com o mesmo sonho da copeira. Mas o que se tornou praticamente uma cidade nas redondezas do Paranoá é apenas um dos parcelamentos que surgiram sem nenhum tipo de planejamento.

O Correio teve acesso a mapas que detalham o crescimento das ocupações de terra na capital federal. O documento revela uma explosão da ocupação de terras. A política de distribuição de lotes e as invasões de espaços públicos fizeram a área urbana do Distrito Federal crescer 132% em pouco mais de duas décadas. Até 1986, apenas 28 mil hectares do território da cidade estavam ocupados. O DF limitava-se a 12 centros urbanos com uma população de 1,3 milhão de habitantes.

Nos últimos 22 anos, outros 37 mil hectares de terras foram transformados em novas cidades ou em condomínios irregulares. Apenas duas décadas foram suficientes para mais do que dobrar o total de terras ocupadas no quadrilátero, um reflexo da necessidade de acomodar uma população que cresceu em ritmo acelerado. Brasília sempre chamou a atenção de estudiosos por ter uma taxa de crescimento demográfico bem acima da média nacional. De 1986 para cá, a população praticamente dobrou. Hoje a cidade tem 2,4 milhões de pessoas e espera-se para 2020 mais de 3 milhões de moradores.

Novas periferias
O crescimento rápido da capital, entretanto, não foi acompanhado pela expansão da infra-estrutura urbana, como rede de água, de coleta de esgoto, iluminação pública, escolas, postos de saúde ou de segurança pública. Ao redor das cidades que se consolidaram, surgiram novas periferias formadas pelo transbordamento dos primeiros centros urbanos. Incentivados pela falta de uma fiscalização efetiva e de uma política conivente com os assentamentos irregulares, os moradores dessas áreas se estabeleceram em busca de terra barata perto do Plano Piloto. Hoje, um quarto de toda a população do Distrito Federal vive nessas regiões ilegais.

O ritmo de crescimento da área urbana da capital também aumentou. Da inauguração de Brasília até 1986, uma média de 1.087 hectares , o equivalente a mil campos de futebol, foi ocupada a cada ano. Desde 1986, esse ritmo tornou-se acelerado. De lá para cá, a média anual de ocupação do território foi 56% superior, ou 1.698 novos hectares de terra se transformaram em parcelamentos urbanos todos os anos. “Tínhamos grande vantagem de o governo ter nas mãos todas as terras públicas, o que era privilégio na América Latina. Com essa vantagem, seria possível planejar a ocupação do território. Mas o governo perdeu esse controle”, avalia o professor de arquitetura e urbanismo da Universidade de Brasília (UnB) Aldo Paviani.

Fuga do aluguel
A história da dona-de-casa Neidimar dos Santos Araújo, 47 anos, é um exemplo dessa falta de organização do território. Depois de passar sete anos vivendo de aluguel no Setor P Sul, em Ceilândia, ela decidiu comprar a casa própria. Sem dinheiro para uma moradia regular, cedeu à oferta de um grileiro. Mudou-se com a família para um lote às margens de um despenhadeiro, aberto por uma erosão e a poucos quilômetros da antiga residência. Neidimar abriu mão do asfalto, da rede de esgoto, da iluminação para fugir do compromisso mensal de um aluguel de R$ 250. Mais tarde, acabou sendo deslocada para outro lote, por risco de desabamento. “Preferi morar num lugar pior, mas que fosse meu”, justifica.

A opção dela foi a de outras 7 mil pessoas, que também vivem no condomínio Pôr-do-Sol. A invasão fica ao lado de outro parcelamento, esse de dimensão muito maior, o Sol Nascente. Juntas, as duas ocupações irregulares têm 82 mil moradores, nenhuma escola, nenhum posto policial ou centro de saúde. O asfalto já foi licitado, mas a iluminação é feita na base de gambiarras e a captação de água é improvisada. Sol Nascente e Pôr-do-Sol têm quase a mesma quantidade de habitantes do que o município goiano de Valparaíso. Os dois parcelamentos de baixa renda surgiram há apenas oito anos.

Uma invasão a cada seis horas
Quarta-feira, 15h30. O telefone toca no gabinete do diretor-técnico de fiscalização da Terracap. Um assessor informa a Luís Antônio Reis sobre mais uma invasão no DF: um homem que começou a erguer uma casa de madeirite na região do Mangueiral, perto de São Sebastião. Uma hora depois, outro telefonema. Dessa vez, a tentativa foi no Recanto das Emas. Reis interrompe a entrevista para dar uma orientação: “Tente agir com toda a calma, mas avise que se ele não sair, vamos derrubar”, sentencia.

As tentativas de invadir uma área proibida no DF ocorrem a cada seis horas. De janeiro a agosto houve 1.465 operações para evitar que barracos fossem levantados em áreas públicos. “Não dá para descansar. De um dia para o outro, o tamanho de uma invasão se multiplica”, diz o coronel Djalma Lins, que coordena a força tarefa do governo montada para interromper as ocupações irregulares.

Impedir que uma invasão se consolide é um dos desafios do GDF para estabilizar o presente e planejar o futuro. “Outra necessidade é dar o mínimo de condições para os moradores das invasões consolidadas”, diz o secretário de Planejamento e Gestão, Ricardo Penna. O mínimo de dignidade a que ele se refere custará R$ 596 milhões em 2008. O valor refere-se ao que o governo reservou no orçamento para infra-estrutura nas regiões mais pobres. “Ainda assim, as necessidades são maiores do que o dinheiro”, prevê.

Outra ação de enfrentamento ao crescimento estabanado no DF obriga o governo a colocar a mão no bolso. Mas, nesse caso, para investir em melhorias nos municípios do Entorno que fazem pressão sobre Brasília. Neste ano, o governo reservou R$ 41 milhões para construir o esgoto em Águas Lindas-GO. Em menos de 15 anos, a cidade a apenas 44km da capital da República chegou a 240 mil moradores. “Reconhecemos o DF como uma metrópole, onde não é mais possível imaginar o desenvolvimento sem pensar no que está em volta dele”, avalia Danilo Aucélio, secretário-adjunto da Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente.