Vila Planalto está sendo desfigurada pela especulação imobiliária

As construções de madeira que guardavam parte importante da história de Brasília deram lugar a residências suntuosas de alvenaria. Esse fenômeno começou na década de 1980, quando a paisagem da Vila Planalto sofreu as primeiras transformações. Hoje, 54 anos depois da fundação da cidade que abrigou os pioneiros da nova capital, a região passa por uma nova onda de especulação imobiliária. Prédios de apartamentos com altura muito acima do permitido pela legislação surgem em todas as ruas estreitas do local. A cidade histórica, que faz parte da área tombada de Brasília, virou a “Vila das Quitinetes”.

A proliferação de prédios impressiona. Pelas normas de gabarito, não é permitido sequer o segundo pavimento. Mas residências de dois ou até três andares são quase a regra na Vila Planalto. Com a pressão imobiliária e diante da enorme demanda por moradia barata e perto da área central, dezenas de antigos pioneiros venderam seus terrenos — o que não é permitido, já que a área é pública. Os novos compradores praticaram outras irregularidades: fracionaram os lotes em unidades ainda menores ou construíram prédios com minúsculos apartamentos, que são alugados por até R$ 1 mil mensais.

O último levantamento oficial realizado pelo governo na Vila Planalto data de 2008. O trabalho desenvolvido pela antiga Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente mostrou que 20% das construções da região estavam irregulares. À época, dos 1.020 lotes oficiais da vila, 188 tinham construções com dois pavimentos e 22 terrenos possuíam obras com três andares. Não foi feito novo levantamento, mas de lá para cá a situação piorou muito, a olhos vistos. A quantidade de edificações acima do gabarito permitido praticamente dobrou e especialistas que conhecem a Vila Planalto estimam que quase 50% das obras tenham alguma irregularidade.

Alheios à ameaça de fiscalização, operários trabalham sem parar, até embaixo de chuva, para erguer os novos edifícios. Não parecem preocupados com embargos ou autuações. Um dos edifícios em obras tem vista privilegiada para o Lago Paranoá e fica voltado para o Setor de Clubes Sul. À primeira vista, é impossível tentar convencer qualquer pessoa de que se trata de uma residência unifamiliar: há oito portas, cada uma com uma respectiva janela, voltadas para um corredor único. Os quartos não se comunicam entre si.

Aluga-se
Um negócio como esse é extremamente lucrativo e pode render até R$ 8 mil por mês em aluguéis. Em vários dos empreendimentos recém-inaugurados, há placas de anúncio que dizem “alugo kits” ou “alugam-se apartamentos de um quarto”. A movimentação nos prédios prontos é grande, o que mostra a grande procura por imóveis desse tipo. A circulação de funcionários é igualmente intensa nas obras. Algumas delas obstruem as ruas e a passagem dos carros.

No lote 24 da Rua 1, a antiga casa virou um prédio de três andares com pelo menos oito quitinetes. A padronização das unidades mostra que o empreendimento foi erguido apenas com a intenção de alugar os quartos: todos têm persianas marrom e mobiliário simples e padronizado. Em outro local da vila, uma construção verde com janelas de blindex protegidas por películas mostra uma ironia. O edifício de quitinetes fica na Avenida Pacheco Fernandes, rua que leva o nome de um dos antigos e tradicionais acampamentos de pioneiros.

A Agência de Fiscalização do GDF (Agefis) garante que realiza com frequência operações na Vila Planalto para embargar qualquer obra em andamento. Mas a proliferação de quitinetes gera divergências dentro do próprio governo. Representantes da Secretaria de Cultura, da Administração de Brasília e da Secretaria de Regularização, Desenvolvimento Urbano e Habitação criticam a ineficiência da fiscalização e a rapidez com que as construções são erguidas no meio da área tombada da capital federal. O assunto também é motivo de grande preocupação no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), responsável pela preservação do patrimônio mundial no Distrito Federal.


Impacto irreversível
Para o professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (UnB) Frederico Flósculo, o desvirtuamento da Vila Planalto representa um golpe na proteção da área tombada. Ele acredita que a proliferação de prédios de quitinetes em uma área tão próxima do centro da capital compromete a identidade de Brasília. “Essas transformações são cumulativas e irreversíveis. O descontrole na Vila Planalto vai deturpar a área tombada e a identidade da cidade”, avalia o especialista.

Frederico Flósculo defende uma maior conscientização da sociedade e dos governos. “Só com educação patrimonial será possível reverter essa tendência de destruição do patrimônio. A falta de cuidado observada nas últimas décadas mostra que os governos não têm nenhuma compreensão da importância do título de patrimônio histórico”, critica o professor de arquitetura.

O superintendente do Iphan no DF, Alfredo Gastal, lembra que o antigo acampamento que abrigava os operários foi tombado pelo GDF. Para ele, a fiscalização é falha e as irregularidades fundiárias contribuem para o descontrole urbanístico. “O processo de destruição da vila está acelerado. Solicitamos sempre providências da Agefis, mas infelizmente a agência tem estrutura pequena para atender todo o Distrito Federal”, diz Gastal.

Todos os terrenos da Vila Planalto pertencem à Companhia Imobiliária de Brasília (Terracap) e os ocupantes têm apenas o direito de concessão de uso. “O governo até hoje não fez a regularização fundiária da área. Todo mundo vive ali a título precário mas, ainda assim, é comum o comércio de concessões de direito real de uso”, acrescenta o superintendente do Iphan. Para ele, a pressão do mercado deixa a Vila Planalto em situação ainda mais frágil. “É muito difícil lutar contra o mercado imobiliário, especialmente em uma área tão valorizada, ao lado da Esplanada dos Ministérios. Como estamos no boom do surgimento das quitinetes, a Vila Planalto virou um alvo”, finaliza Gastal.

Conservação

Hoje, existem apenas 19 construções remanescentes em madeira, mas a maioria está em avançado estado de deterioração. Entre as edificações da Vila Planalto, cinco são classificadas como de preservação rigorosa. Entre elas estão as cinco casas da antiga Fazendinha e a Igreja Nossa Senhora do Rosário.